“Cura de todos os males”: Unguentos Holloway nos jornais do Rio de Janeiro (1821-1848)

UM BREVÍSSIMO QUADRO DA MEDICINA NO BRASIL

               Desde o período colonial até o Brasil Imperial, a falta de médicos nos trópicos sempre se fez presente. Como as dores físicas e doenças sempre existiram, as pessoas buscavam alguma forma de se aliviarem ou se curarem. Nesse contexto, existiam pessoas voltadas para as práticas de curas, como os físicos, barbeiros, curandeiros e boticários. Sem nenhuma formação acadêmica, uma vez que a consolidação do saber médico científico ainda estava em construção, esses agentes de cura obtinham seus conhecimentos por meio da prática empírica ou herdando conhecimento de outros.

               Além desse quadro geral, a população, no geral, tinha uma visão geral sobre-humana das doenças contraíam: a de que estavam naquele estado enfermo devido a pecados cometidos. Trata-se de um pensamento religioso, herdado ainda da chamada Idade Média. Essa característica implicou na maior credibilidade dada aos chamados curandeiros¹ em detrimento dos médicos formados nas recém-criadas faculdades de medicina, já que os primeiros teriam uma visão sobrenatural ou além do físico que os segundos não possuíam. Mesmo recebendo sendo criticados por diversos acadêmicos como charlatões, os remédios produzidos por esses curandeiros curavam (ou davam a impressão de que haviam curado) os enfermos. Este fato corrobora ainda mais a sua ampla aceitação popular e até mesmo da elite letrada que, não raro, se misturava dentro das boticas em busca de uma solução para seus problemas². Mas não eram só os curandeiros que produziam esses remédios.

               É justamente o que abordo nessa publicação. Encontrei, em jornais oitocentistas, anúncios de um unguento capaz de curar tudo (ou pelo menos quase tudo). Segundo um dicionário do século XIX, unguento é definido como um aroma oleoso de ungir. Também pode ser considerado um remédio feito de óleo, ou matéria untuosa para ungir³. Ao me aprofundar no assunto, percebi que não se vendia apenas o unguento. Os próximos parágrafos são destinados a uma análise desse caso, utilizando jornais como Diário do Rio de Janeiro e o Jornal do Commercio, dois dos periódicos mais lidos na capital imperial.

OS PRODUTOS DE THOMAS HOLLOWAY

               Os unguentos e pílulas Holloway vendidos no Rio de Janeiro no século XIX tem suas origens na Europa. Seu criador, Thomas Holloway, nasceu em 1800, na Inglaterra. Aos 36 anos, Holloway trabalhava como agente comercial em Londres, quando estabeleceu os primeiros contatos com Felix Albinolo, um vendedor italiano de sanguessugas e unguentos. Albinolo havia criado um unguento para uso geral, o que inspirou Holloway, em 1837, a fazer o mesmo na cozinha de sua mãe, surgindo assim o unguento Holloway. 4

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Figura 1: Thomas Holloway jovem

               O inglês apostou veementemente nas propagandas, o que garantiu grande sucesso econômico nas décadas posteriores, evidenciado pela construção de duas instituições5 e pelo capital acumulado até a sua morte6. Por mais que não tivesse nenhuma licenciatura, Holloway se intitulava como “Professor” em seus anúncios como forma de obter mais prestígio, afirmando que seus produtos eram capazes de curar qualquer tipo de enfermidade.

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Figura 2: Anúncio em inglês para as pílulas e os unguentos, 1903 (após a morte de Holloway).

               Seus anúncios fizeram tanto sucesso que foram além-mar, chegando à capital da Corte Imperial do Brasil. Neste caso, a presença dos anúncios se deu num cenário de intensa descrença nos métodos médicos. Como Sampaio afirma, nos “próprios jornais encontramos alguns tratamentos alternativos à medicina oficial, que pareciam ser bastante buscados, como os remédios não científicos, por exemplo”.7

ANTECEDENTES NO RIO DE JANEIRO

               Notei que antes do primeiro anúncio de Holloway, existiam outras propagandas de unguentos. Até mesmo um artigo de 1821 que instruía os leitores a preparar banhos e unguentos para a sarna, cujos resultados seriam visíveis a partir de 4 a 8 dias de uso8. A segunda ocorrência para o termo unguento no Diário é datada de 1830, da qual um boticário instalado na Praça da Constituição vendia e ensinava como usar o “maravilhoso unguento ant-sarnozo de Campello, optimo para sarnas empingres, cancros venerios, e figado bravo”.9

               Um anúncio que se repete bastante nas folhas do Diário é o do unguento Durand. Era descrito como capaz de curar “radicalmente feridas, chagas, espinhas, apostemas, impigens, cancros” e também “princípios de gangrena”. Ressalta-se que o próprio anúncio, já preocupado com as denúncias de charlatanismo, afirma que “em vez de iludir com palavrões proprios dos charlatães, tão somente convida a utilisar-se do referido unguento, na certeza de um favoravel effeito”. Além disso, afirma que a cura nem sempre seria rápida, “mormente quando o mal é inveterado, pois que elle jámais secca a ferida antes de lhe extrair os máos humores”. Termina por dizer que seu autor só receberia o dinheiro “depois do inteiro curativo” do interessado10. Isso nos mostra que, com certa probabilidade, tais vendedores já deviam ser acusados de charlatanismo, mesmo antes da concretização da elite acadêmica.

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Figura 3: Produtos Holloway

               Existem muitos outros exemplos de anúncios, como o remédio para olhos do Sr. Antonio Gomes, afirmando ser capaz de restituir a vista11; na Rua dos Pescadores, eram vendidos unguentos para hemorroidas, sarnas e queimaduras, entre outros produtos, como Bálsamo de Belmira para sangue na boca e água tônica12; e também uma loja de drogas na rua S. Pedro, que vendia unguento “detergente para o curativo de todas as chagas inveteradas, ulceras indolentes, feridas antigas, errupçoes externas herpeticas, empingens e todas as erupçoes cutaneas”, além de elixires e pílulas.13

               Esses casos nos mostram que havia uma grande diversidade de anunciantes e produtos na Corte Imperial. Ainda era provável que essa pluralidade fosse ainda mais forte se levar em conta as outras formas de anunciar tais produtos, como a colagem de cartazes nas construções, prédios ou murais de comunicação. Mas nos contentemos com essa heterogeneidade acima mostrada e que compreende os anos entre 1821 e 1843.

               A partir de 1848, 11 anos após começar a ser anunciado na Inglaterra14, o primeiro anúncio do unguento Holloway é encontrado nas folhas do Diário. Ele logo se destaca na edição 7788, do mês de maio, por ocupar metade da página 4. Carregado pelo título “CURA DE TODOS OS MALES POR MEIO DAS PILULAS E UNGUENTOS DO PROFESSOR HOLLOWAY”, o anúncio traz recomendações de outros médicos, depoimentos de pacientes que se curaram usando as pílulas e os unguentos e uma vasta lista de enfermidades combatidas:

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Figura 4: Lista de enfermidades combatidas

               A imparidade dos anúncios de Holloway em relação ao demais se evidencia, primeiramente, pela questão temporal. É possível encontrar tais anúncios no Diário quase que diariamente entre os anos de 1848 a 1878. Isso nos mostra que a mesma estratégia utilizada em sua terra natal também foi utilizada no Rio de Janeiro e em outras cidades.15

               Em segundo lugar, durante os anos analisados, os anúncios de Holloway seguiam o mesmo modelo de formatação e texto do exemplo acima mostrado. Mostraram algumas variações com o passar do tempo, como tamanho do anúncio ou título diferente. Em 1854, por exemplo, um anúncio trazia outras enfermidades que eram combatidas pelo unguento, como queimaduras, cortes, picada de mosquitos e tremores.16

               Certamente os remédios de Holloway fizeram sucesso enquanto eram vendidos. Se o tamanho de sua riqueza adquirida ou as várias cidades espalhadas pelo mundo em que seus produtos eram vendidos não servirem de sustentação para essa ideia, então trago mais. Em 1878, um anúncio de Holloway alertava seus leitores e compradores sobre falsificações de seus produtos.

               “Antes de effectuar a compra deve examinar-se com muita attenção o Rotulo ou Letreiro contido nos frascos ou caixas, certificando-se cada pessoa se elles teem a seguinte declaração: 533, Oxford Street, London, porque a não a conterem está manifesta uma descarada falsificação”.17

               Um remédio que não fizesse tanto sucesso não seria alvo de falsificações e, portanto, dispensaria as diversas precauções emitidas nas edições do Diário.

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Figura 5: Anúncio que circulava em países de língua espanhola

               No Jornal do Commercio, encontrei um anúncio, em 1854, que mostrava o preço dos produtos. “As bocetas vendem-se a 1 fr. 60 cent, 4 fr. 20 cent. E 6 fr. 40 cent. Cada boceta contém uma instrucção em portuguez para explicar o modo de fazer uso deste unguento”18. O preço acessível dos frascos possibilitaria sua compra não só por pessoas mais abastadas, mas também por aquelas mais humildes. Essa acessibilidade de compra pode ter resultado numa proliferação e popularização dos unguentos de Holloway. As instruções em português também podem indicar que havia uma demanda considerável ao ponto de se fazerem traduções das instruções.

               Não encontrei possíveis evidências sobre a eficácia de tais remédios no Rio de Janeiro. Porém, Crawley apontou que existem evidências de que Thomas Holloway tinha ciência, apesar de nunca ter afirmado isso abertamente, da pouca eficácia médica de seus remédios, e que a pessoa só se via melhor depois de uma forte diarreia em decorrência da ingestão do remédio.19

 

REFERÊNCIAS

1 No Rio de Janeiro, mesmo com a maior participação dos médicos acadêmicos e a propaganda contra as práticas curandeiras ao longo do Oitocentos, boa parte da população concedia mais créditos aos curandeiros por estes terem um vínculo com o sobrenatural. SAMPAIO, Gabriela. Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro Imperial. 1995. 192 f. Dissertação (Mestrado em História) – Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, São Paulo.

Segundo Soares, a medicina era tão pouco reconhecida até o final do século XIX que a maioria das pessoas letradas que se iam estudar em Universidades, optavam por outras áreas do conhecimento. A descrença na medicina não era, portanto, uma característica única de pessoas mais humildes que inexoravelmente recorriam a outras práticas de cura. SOARES, M. de S. Médicos e mezinheiros na Corte Imperial: uma herança colonial. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, pp. 407-438, jul./ago. 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-59702001000300006&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em: 19 nov. 2018.

3 UNGUENTO. In: Diccionario da lingua portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e accrescentado por Antonio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro (Volume 2: L – Z). Lisboa: Na Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789. Disponível em: <https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5413>. Acesso em: 19 nov. 2018.

4 Homan, P.G.; Hudson, B.; Rowe, R.C. Holloway’s Pills and Ointment. In: ______. Popular Medicines. An illustrated History. London: Pharmaceutical Press, 2008. Cap 11.

5 Idem.

6 Idem

7 SAMPAIO, Op. cit., p. 82.

8 Diário do Rio de Janeiro, 14/06/1821, p. 5

Diário do Rio de Janeiro, 08/04/1830, p. 2

10 Diário do Rio de Janeiro, 09/12/1839, p. 3

11 Diário do Rio de Janeiro, 22/06/1841, p. 3

12 Diário do Rio de Janeiro, 12/07/1841, p. 3

13 Diário do Rio de Janeiro, 16/01/1843, p. 3

14 “En 1837 aparecieron en los periódicos los primeros anuncios”. FERBER, José. El ungüento y las píldoras Holloway. Disponível em: <https://historiadelamedicina.wordpress.com/2017/01/21/el-unguento-y-las-pildoras-holloway/>. Acesso em: 19 nov. 2018

15 Utilizando outro periódico, me deparei com uma publicação sob o título de Fortunas feitas por meio dos Annuncios. Por meio dela, foi possível extrair a informação que Holloway gastava em torno de “vinte mil libras esterlinas” para ter seus anúncios expostos não só na “Grãa-Bretanha” como também “India”, “Hong-Kong”, em “quase todos os diarios de Sidney”, “em todo o Atlantico […], Santos, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco”. Jornal do Commercio, 13/03/1854, p. 2-3

16 Jornal do Commercio, 15/03/1854, p. 3

17 Diário do Rio de Janeiro, 03/01/1878, p. 4

18 Jornal do Commercio, 15/03/1854, p. 3

19 “There was some evidence that Holloway himself knew the pills were quack medicines that, yes, perhaps, cleansed the body, but only by way of violent diarrhea. Even if he never publicly admitted that fact, it seems the public knew, regardless”. CRAWLEY, Alex. Method in His Madness: Enacting Male Normativity in Holloway Sanatorium for the Insane, 1880-1910. 2018. 252 p. Ph. D. thesis (Philosophy in History) – Graduate College of the University of Illinois at Chicago. Disponível em: <https://indigo.uic.edu/bitstream/handle/10027/22686/CRAWLEY-DISSERTATION-2018.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 19 nov. 2018.

Figura 1: Homan, P.G.; Hudson, B.; Rowe, R.C. Popular Medicines. An illustrated History, p. 74.

Figura 2: Idem, p. 79.

Figura 3: Idem, p.77.

Figura 4: Diário do Rio de Janeiro, 05/05/1848, p. 4

Figura 5: https://historiadelamedicina.wordpress.com/2017/01/21/el-unguento-y-las-pildoras-holloway/

FONTES

DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO (1821; 1848-1853; 1878). Disponível em: <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>

JORNAL DO COMMERCIO (1854). Disponível em: <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>

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